Primórdios de Londrina por um Pioneiro

Londrina e Caetano Otranto

Primórdios de Londrina no Paraná
vivida por um de seus pioneiros: Caetano Otranto
texto de sua filha Wilma Clara Otranto Chagas

Londrina em 1935

Londrina em 1935

Corria o ano de 1930, a crise em São Paulo atingia o auge. Desavenças políticas, revolução, desemprego em massa, tudo isso colaborava para aumentar a tensão em que o povo vivia. Meu pai procurava emprego, mas em vão, as dificuldades aumentavam e as necessidades também.

Acidentalmente um dia meu pai, encontra um amigo de alguns anos, o Sr. Javarina, a quem não via há muito tempo. Este lhe fala maravilhas sobre uma região ao norte do estado do Paraná, ainda verdadeira mata virgem e que uma Companhia de Terras Inglesa abria. Plantavam-se cidades que muito prometiam em virtude do verdadeiro êxodo de paulistas, os eternos bandeirantes, em parte movidos pela necessidade e, em parte, pelo espírito pioneiro. Em 1931 lá se foi meu pai para Cornélio Procópio, norte do Paraná. Deixou minha mãe e irmãos morando em uma vila perto da casa do tio Luigi, irmão de minha mãe, que nos atenderia nas dificuldades e partiu sozinho, com o coração esperançoso. A família foi chamada mas ficou apenas 3 meses.

A estrada de ferro terminava em Jatay, pequena vila situada as margens do rio Tibagi. O resto da viagem era feito de “jardineira”, onibus aberto nas laterais e geralmente em péssimo estado de conservação, já que as estradas eram “picadas” abertas a facão, cortando a mata virgem e espessa, onde abundavam macacos, cobras e até onças pintadas. Durante a época das chuvas o transporte era impraticável. As vilas ficavam sem comunicação e completamente isoladas do resto do país.

Foi desta maneira que meu pai, Caetano Otranto, chegou a Londrina em julho de 1932. O Sr. Javarina, o amigo que o levara a decidir-se àquela aventura, morava em Jatay, onde tinha um armazém de secos e molhados e que combinou que seriam sócios; ele forneceria o estoque, desde que papai arrumasse o armazém e cuidasse de todo o resto.

Casa Caetano em Londrina PR

Casa Caetano – Fundada em 1932

A “Casa Caetano” ficava situada numa esquina da rua Heimital (atual R. Duque de Caxias). Era toda de madeira, à moda das construções da região e sem pintura. A residência ficava anexa: dois quartos, saleta e cozinha (esta feita de troncos de palmito, cortados ao meio e alinhados para formar as paredes, sendo coberto com placas de zinco). O banheiro era uma casinha de madeira, no fundo do quintal e que tinha apenas um buraco coberto por um assento de madeira. Tomava-se banho na semicúpio, uma bacia metálica com encosto. O quintal muito grande mais se parecia uma chácara. O poço, a cocheira e alguns galpões completavam o cenário e a mata por todos os lados. Aqui e ali, clareiras se divisavam, mais além queimadas, derrubadas e por todos os lados a palavra mágica: café !

Grandes fazendas se formavam cuja plantação principal era o café. Terra quente e seca, terra roxa de alta qualidade, propícia àquela lavoura e de permeio, o feijão, o milho, o algodão e aqui e ali, o arroz. Aquela terra vibrava, estava virgem, só esperava ansiosa pelo momento de viver e frutificar.

Havia gente de todos os lugares do Brasil, mineiros, baianos mas, principalmente, os paulistas. Havia também grande número de ingleses que pertenciam à Companhia de Terras do Norte do Paraná e que deram nome à cidadela que nascia de “Londrina”.

Meu pai mandou-nos buscar em dezembro de 1932. Embarcamos rumo a Londrina e despedimo-nos entre as lágrimas de nossos parentes, inconformados e que imaginavam que íamos a um outro mundo, o que em parte estavam certos, pois aquele lugar era mesmo um outro mundo.

Chegamos em Londrina no dia 10 de dezembro de 1932, após 30 horas de viagem de trem, balsa e jardineira. Eu tinha 2 anos, a Leda 7 e o Weber 5 anos. Mamãe tinha até trazido um bolo pronto para comemorar o aniversário do meu pai. Ao chegarmos já estava escuro e o papai mandou buscar uma marmita na pensão do Seu Faria. A mudança havia sido despachada antes, mas meu pai não tinha tido a iniciativa de desengradar as camas. Ai, o Atanásio, empregado de papai é que foi montar as camas, acender o fogo e esquentar a água para o banho. Não é preciso dizer que a mamãe muito nervosa e quis esganar meu pai.

Minha mãe, que mal conhecia os arredores de São Paulo, muito se afligiu nos anos que se seguiram, quando faltavam os mais elementares meios de conforto e que entre lamaçais intransponíveis, na época das chuvas, poeira de cegar, na época das secas e fumaça de asfixiar na época das queimadas, criava quatro filhos. Nós, as crianças, éramos muito felizes e qual a criança não é feliz tendo o mundo por quintal?

Na falta da luz elétrica, o lampião a querosene iluminava alegres noitadas, serenatas e ruidosas reuniões. Quando completei quatro anos mamãe fez o bolinho que reparti com meus irmãos e minhas amiguinhas que como eu, eram filhas de pioneiros e que participavam do nascimento daquela cidade. Nesta mesma noite, quando nos preparávamos para dormir, eis que chegam numerosos amigos dispostos à mais uma noitada, eram os “assustados”, muito em voga naquela época.

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Caetano Otranto

Papai aliava as funções de comerciante com as de Juiz de Paz e Juiz de Menores. Muitos “causos” foram resolvidos atrás do balcão do armazém; um deles, foi o nascimento da minha irmã Lucy Neide, digo isso, pois apenas uma fina parede de madeira separava o quarto de meus pais do armazém e papai, mesmo depois que ela se fez moça, dizia orgulhosamente, que ela nascera “por detrás do balcão”.

A cidade crescia, os negócios prosperavam; meu pai teve uma ideia: já morávamos há cinco anos naquela casinha de madeira. Comprou dois lotes de terreno, na Rua Maranhão, construiu uma boa casa e um armazém anexo, de esquina. Para isso ficou devendo muito mas, não haveria perigo, ele tranquilizava mamãe, tudo corria bem, os negócios eram fáceis.

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Londrina em 1937

A casa ficou pronta e eis que uma grande firma, trabalhando no atacado e no varejo abriu suas portas, a Casa Fuganti, enquanto papai e todos os outros pequenos comerciantes fecharam as suas. Foi um tombo colossal. Meu pai tinha quatro filhos, uma dívida para pagar e ai, outro amigo apareceu, oferecendo-lhe um bar no centro, que por sinal tinha o nome comercial de “Bar do Centro”. Ali ficamos algum tempo. Nesta época instalaram a luz elétrica na cidade e devia correr o ano de 1938. Nunca mais esquecerei a sensação que experimentei no momento em que tudo de repente se iluminou. Ai apareceram as geladeiras, os rádios, quanto conforto! Tudo melhorou, menos o pó, a lama e a vida financeira de papai, mas o aspecto interessante, era o seu constante bom humor. Nada havia que o desanimasse. Era como o velho ditado árabe “Kismet” (que significava “o destino”). Alegre, humano e profundamente bom. Era amigo de todo mundo, sempre tinha uma palavra afetuosa e de bom humor para com todos.

Quando mamãe saia com ele ficava exasperada, ela, de natureza introvertida, não se conformava de parar tantas vezes na rua para dar “dois dedos de prosa” com este ou aquele.

E Londrina continuou crescendo. Veio o avião, o asfalto, os prédios de apartamentos. A sociedade mudou, evoluiu. Fundaram-se ginásios e faculdades. Nós nos casamos e ele continuou, corretor de seguros, pasta na mão, subindo e descendo as ruas e avenidas da cidade querida que era a menina de seus olhos. Com grande número de amigos, sempre fiel aos antigos e sempre interessado nos novos. Não perdeu o entusiasmo pela vida, mesmo quando a idade chegou e, com ela, a doença.

Cada vez que ele perdia um amigo, morria junto com ele por dois ou três dias. Depois, tornava a enfrentar a vida com a filosofia de sempre, até que a morte veio buscá-lo e creio que o levou, porque o encontrou desprevenido … estava dormindo.

Com imensa saudade da sua filha Wilma.

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ASSIM ERA PAPAI

por sua filha Leda Maria Thereza Otranto Robert

Tranquilo, bom de coração, honesto, trabalhador, amigo de todo mundo, sempre fazendo o bem a todos. Era maçom desde mocinho. Que eu me lembre, nunca ouvi papai falar mal de ninguém ou fazer um comentário maldoso sobre qualquer pessoa. Nunca soubemos em quem papai votava nas eleições e, também, não nos induzia a votar neste ou naquele candidato.

Ajudava a todos, era um bom conselheiro e orientador para muitas pessoas. Sempre alegre e de bom humor, tendo palavras amigas de consolo e estímulo a todos que se aproximavam dele com problemas. Ele era mesmo de paz e amor. Há uma passagem que confirma esta sua atitude. Não sei o que houve, mas aconteceu que papai estava tomando cafezinho no bar Líder quando um cidadão ofendeu papai com palavras pesadas e injuriosas, porém ele não revidou, simplesmente virou as costas e foi embora. Os amigos presentes no bar se revoltaram com a passividade de papai. Porque o que o cidadão merecia mesmo era um bom soco na cara. Só sei que alguns dias depois, os dois se encontraram, no mesmo bar e com a mesma plateia, ai então o cidadão, na frente de todos, pediu perdão e desculpas ao papai. No fim, os dois se abraçaram e tudo ficou bem. Assim era papai.

Como pai foi muito bom, amoroso, compreensivo, mas omisso em relação a educação escolar dos filhos. Nunca perguntava como iam os estudos e, não tinha pulso firme quanto a isso. Ele não se incomodava com este tipo de problema, assim mamãe, é quem tomava as rédeas e dentro do possível a tudo resolvia.

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PÉS NOS QUEIXOS
uma caninha até para europeu

A Casa Caetano, de Caetano Otranto, vendia quase de tudo, de secos e molhados a artigos escolares; vinhos e outras bebidas finas, conservas nacionais e estrangeiras. E com destaque, na condição de único depositário, a “afamada, saborosa e higienificada” Caninha Pés nos Queixos. Assim está em anúncio na edição n° 1 do Paraná- Norte (publicado em 9/outubro/1934). Mas no número 2, a direção do jornal publica nota sob o título “Não quer Reclame!, informando que Caetano pede o cancelamento do anúncio, alegando que fora autorizado “por equívoco de um empregado”. No pedido de cancelamento, o astuto Caetano aproveita para falar bem de seu estabelecimento. E o jornal publica: “De Londrina a Pé nos Queixos era exportada para a Europa”, dizia Caetano. “Minha casa está tão conhecida, vende tão barato, que não necessita de reclames”, alardeia. “Quanto à caninha, a saborosíssima Pés nos Queixos, é que em verdade dispensa reclames. Ela é conhecidíssima!” Segundo Caetano, aquele “nectar” estava registrado no Bureau Internacional de Berna e havia ganho a preferência de “casas reinantes” na Europa, “tronadas e destronadas”. E no arremate da missiva ao jornal: “Neste momento estou despachando para a Inglaterra 5000 caixas do afamado e formidável produto”.

Esta matéria foi publicada no Jornal de Londrina e registra com maestria o espírito bem-humorado de Caetano Otranto. Um brinde a ele, com a caninha Pés nos Queixos!

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CAETANO OTRANTO
por José de Oliveira Rocha

Ontem, por coincidência, à mesma hora em que, diariamente, comparecia o pai ao meu cartório, para um dedo de prosa, apareceu o filho do saudoso Caetano, para dar-me notícia do infausto passamento. Eu já havia sabido da ocorrência, logo que cheguei e com grande espanto aliás, pois, ainda sábado passado, conversávamos animadamente sobre Londrina e o seu Jubileu.

Foi Caetano Otranto um dos pioneiros e, nesta altura, já muito deve a história da cidade à sua memória, porque do relato que fazia originou-se, em parte, a tradição londrinense.

Quando aqui cheguei e precisei instalar o cartório, foi das mãos de Caetano que recebi, por empréstimo, a primeira mesa, tirada do seu bar, onde comecei a minha função de tabelião. Era ele, então, Juiz de Paz, Londrina era, nesse tempo, pouco mais do que se vê no azulejo com que o atual Prefeito, em boa hora, acaba de revestir parte de uma das fachadas laterais do Paço Municipal, e já, de há muito, o bom Otranto aqui estava.

Lembro, com profunda saudade aqueles dias, bem diferentes dos atuais alegres e festivos, em que os vitoriosos de hoje quase esquecem os lutadores de ontem, saudade esta, neste instante mais agravada, com o desaparecimento de uma figura indispensável a recomposição do quadro de antanho.

Caetano Otranto não chegou a ver as comemorações do dia dez. Seu generoso coração não mais pulsava, quando as marchas e dobrados ecoaram pela cidade moderna, que um dia o acolheu, como simples e lamacento vilarejo. Seus olhos não viram o desfile alegórico impressionante e belo, nem se extasiaram, à noite, com a chuva de fogo multicor. Jazia já, o seu corpo, no ventre abençoado nesta mesma terra que sentiu os seus passos de pioneiro, há trinta anos atrás.  Tem que ser assim e este é o destino humano.

Entretanto, ontem, na hora em que o céu se acendeu com aquele imenso clarão de prata, pareceu-me ver a alma boa de Caetano Otranto, a sorrir da altura, para a sua cidade querida.

Londrina, sábado, 12 de dezembro de 1959

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A T E N Ç Ã O
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atualizado em: 24/julho/2023