Por Pouco Não Fomos Austríacos

Texto escrito por Conceição Pugliese Otranto (minha avó materna)

Dezembro de 1912. Eu tinha apenas 10 anos quando perdi minha mãe (Chiara Patanè Pugliese). Foi em 16 de dezembro e, eram 4 horas da madrugada, quando me tiraram da cama para ver minha mãe, que tinha acabado de falecer. Mas ela já sabendo que ia morrer tinha providenciado tudo. Lenços com barra preta para o nariz, lenços grandes de seda preta para os homens e até comprou o pente que era para pentear os cabelos dela depois de morta. Ela quiz o travesseiro para por no caixão e exigiu que minha tia fizesse o vestido da Nossa Senhora da Conceição. Quando percebeu que minha tia estava fazendo o vestido, implorou ao meu pai que queria vê-lo. Ela ficou muito contente, beijou o vestido e agradeceu ao meu pai por atender seu último desejo. Me lembro tão bem, como se fosse hoje; os cabelos soltos, o manto azul cheio de estrelinhas. Às 16 horas foi o enterro e ai ficaram as janelas da casa fechadas até a missa de 7° dia. Não se acendia fogo por 8 dias. Meus irmãos com a barba comprida e os parentes mais próximos e as comadres faziam e traziam a comida para a gente. Mamãe recomendou a Iuzza, minha irmã mais velha, que tomasse conta de mim. Ela tinha sempre uma palavra de conforto para todos. Só me lembro de minha mãe gemendo, mas era muito alegre e fazia palhaçadas para os filhos rirem. Naquele tempo havia muito respeito pelos pais. Pai e mãe era uma coisa sagrada, mas nunca tive um carinho de minha mãe, nem de meu pai. A manifestação do amor aos filhos era diferente.

Estamos em 1913 e a vida continava normalmente. A tia Carmem casou-se com o tio Luiz fazia 6 meses, e ela tinha apenas 15 anos. Minha irmã Carmelita tinha 13 e eu 10 anos. Éramos três crianças e tivemos que tomar conta de uma casa. Naquela época morávamos no Brás, na Rua Henrique Dias. A Iuzza morava perto da Estação da Luz. Ela vinha sempre dar uma mãozinha, mas brigava muito comigo, então eu fui morar em definitivo com ela e todos os domingos ia ver meu pai.

Fomos convidados pelo pai da Luccia para almoçar na casa deles, pois havia uma festa na Igreja de Santa Anna. Eles moravam na Rua Voluntários da Pátria, perto dessa Igreja. Houve muita alegria, muito vinho e fartura de tudo. Tudo correu bem até na hora de irmos embora. A noite fomos tomar o trem da Cantareira que passava no Brás. O meu pai, ao subir no trem, perdeu o equilíbrio e caiu num buraco e logo em seguida começou a passar mal. Passou a noite toda gemendo. Um médico veio lhe ver mas não adiantou nada. Por fim chamaram um médico famoso e ele falou que meu pai não passaria daquela noite. A barriga dele estava muito inchada. Me lembro daquela noite. Todos os filhos a volta da cama; a Iuzza e eu rezamos a noite toda nos pés da cama. Quando foi de manhã meu pai estava pior. Então resolveram chamar o Dr. Mauro de Camargo, que era o médico particular do Conde Matarazzo. Ele apenas viu meu pai e mandou levá-lo imediatamente ao Hospital Umberto Primo (onde mais tarde eu fui operada do joelho). Ele não garantiu a operação, mas enfim meu pai se salvou. Ficou dois meses no hospital. Um mês com o intestino de fora (colostomia) que depois colocaram no lugar. Naquele tempo o acompanhante passava bem, nas refeições vinha até meia garrafa de vinho do bom. O Conde Matarazzo foi visitar o meu pai, a quem ele chamava de Chico. Passado uns meses, meu pai foi passear na Itália e quando voltou trouxe muitas coisas gostosas. Ai a vida continuou normalmente por bom tempo.

Estamos em 1918. Eu tinha 16 anos e estava aprendendo a costurar. Eu morava com a minha irmã Iuzza perto da Estação Sorocabana. Eu já era moça feita e chamava atenção … e naquela época eu conheci Rodolfo, um rapaz austríaco, que era a estampa do Pink (marido da minha neta Maria Cristina), só que mais magro. Nós nos apaixonamos e ai foi um tormento em minha vida. A minha família não aceitava o namoro de jeito nenhum, porque a Itália estava em guerra contra a Áustria. Então era aquele ódio mortal e por mais de 5 anos fizeram de tudo para eu terminar o namoro. E naquele tempo, o amor era verdadeiro … só tinha uma irmã ao meu favor, por que ela era casada com um alemão (Giovannina casada com Otto) e às vezes eu me encontrava com Rodolfo em casa dela às escondidas. Eu era proibida de sair de casa, mas um belo dia, a minha irmã Iuzza resolveu ir para a Itália com o tio Domingos e eu fui obrigada a voltar a morar com o meu pai no Brás. Eu aprendia costura na Rua José Paulino e todos os dias eu subia a Rua Paula Souza para ir ao Bom Retiro, pois não havia condução. Com essa viagem da minha irmã, eles ficaram com medo que eu fugisse, então mesmo contra a vontade de todos eu fiquei noiva – e no dia do noivado parecia que os meus irmãos estavam velando um defunto. Ele só tinha direito de vir a cada 15 dias. Meus irmãos olhavam para ele com pouco caso, até que eu mesma decidi acabar com aquele martírio. Acabei com tudo e sofri muito. Para mim não havia mais alegria, eu ia desabafar as minhas mágoas no túmulo de minha mãe. Todos os dias ele me telefonava, mas eu não atendia, pois tinha medo de não aguentar aquele suplício.

Em janeiro de 1923, perdi meu pai que contava com 67 anos. Eu já tinha 21 anos e fiquei morando com o tio Luiz e a tia Carmem. A vossa avó (vovó Maria Thereza Sellaro Otranto) se dava com a tia Carmem e com a tia Florinda. Elas sempre se encontravam no açougue. E quando ela soube que tinha uma cunhada orfã, achou que deveria arrumar o casamento para o filho dela (Caetano Otranto). Um dia, quando Caetano chegou de viagem, ela falou com ele que tinha arrumado esposa para ele. Que era uma moça do gosto deles. Assim, começaram a me por na parede, pois queriam saber se eu aceitava o pedido. Eu me desesperava, porque não podia aceitar sem conhecer o rapaz. Num belo dia, eu fui a farmácia e desabafei com o meu amigo farmacéutico, que por uma coincidência, também era amigo do Caetano. Nisso aparece o tal de Caetano e me foi apresentado, ai eu percebi que ele era o tal …

O jovem casal Caetano e Conceição OtrantoOs jovens Caetano Otranto e Conceição Otranto

 

Diante da pressão que faziam os meus irmãos decidi aceitar. Mas falei que se eu fosse um dia infeliz, eles seriam os culpados. Então me responderam que eu tinha irmãos que olhariam por mim. O único que não deu palpite foi o Gregório, por que ele havia fugido para casar com a Anunciata, casamento que meu pai não havia aceitado de jeito nenhum. A segunda vez que vi o Caetano, foi em casa. Ele veio me visitar, mas como a tia Carmem não estava, ele nem entrou.

Não me arrependi de ter casado com Caetano, pois ele sempre foi muito bom para mim, paciente e tolerante. Casamos no dia 5 de junho de 1924. Depois de 5 dias ele foi viajar pela Sorocabana (naquela época ele era caixeiro viajante) e voltou no dia 5 de julho. No dia seguinte, num sábado maravilhoso, começou a Revolução. E com ela o tiroteio. Passamos dias inquietos e, logo em seguida, começou a faltar de tudo. Depois de alguns dias fomos obrigados a sair e passar a dormir no porão da casa onde casamos. Eramos em 20 pessoas, dormindo em  colchões no chão. Assim foi a minha Lua de Mel. E depois a coisa foi ficando pior e abandonamos tudo porque era muito perigoso ficar ali. Com as mochilas nas costas fomos à pé para a casa da tia Carmelita e os outros foram para a Água Branca, onde morava o Gregório. O pior pedaço era atravessar a Estação da Luz. Por causa dos quartéis, eram bombas que caiam uma atrás da outra. Nós nos jogávamos no chão de medo de sermos atingidos. Depois que tudo acabou dava tristeza olhar para certas ruas, todas esburacadas, vidros quebrados. Cambuci, Santana, Moóca, dava muita dó. Muita gente morreu. Depois de tudo normalizado, Gaetano foi viajar de novo, mas não conseguia vender nada. Assim o tempo foi passando. Nasceu a Leda, o Weber, e quando estava para nascer a Wilma, veio uma grande crise econômica e o desemprego era grande em São Paulo. Gaetano não encontrava emprego nenhum e foi preciso recorrer aos meus irmãos. Mudamos para uma casinha na Penha. Gaetano pediu um conto de reis para o Sr. Amprílio e outro para o Sacomani, que era muito amigo dele e assim me nasceu a Wilma. Foi um período muito triste da minha vida. Sem dinheiro, sem emprego e uma filha que devia ser operada. Depois de uma semana, a Wilma foi batizada, pois tinhamos medo que ela moresse durante a operação. Depois de operada, Gaetano foi embora por esse mundo afora. Eu tinha que sair cedinho para a Santa Casa todos os dias para fazer curativo na Wilma e eu dava leite de colherinha porque ela tinha esparadrapo na boca e só Deus sabe o que passei.

(Nesse ponto minha mãe parou de fazer as anotações porque lembrar o passado para ela era muito penoso)

Ela me contou que em 1931 papai ficou nove meses fora de São Paulo. Abriu um armazém em Cornélio Procópio no Paraná e veio nos buscar em São Paulo. Eu já estava com 9 meses, mas o lugar era tão precário, nem siquer tinha luz ou água encanada. Mamãe tinha que buscar água longe da nossa casinha rústica feita de madeira e palmito. Pagava 50 reis a lata d´àgua e assim ela não aguentou a falta de condições. Os tios Carmem e Luigi vieram de São Paulo e ficaram por lá alguns dias. Na ocasião o tio Luigi fez uma tábua de lavar roupa para minha mãe. Ela contou também que pegou uma gripe muito forte e teve muita febre. Pediu para alguém lhe fazer uma canja e, a baiana que fez a tal da canja, colocou a galinha com os pés com unhas no caldo. Ela voltou para São Paulo com as crianças no início de 1932 e, papai, foi procurar outra coisa para fazer.

Afinal resolveu-se por Londrina. Chegamos lá no dia 10 de dezembro de 1932 às 10 horas da noite. Mamãe, Leda, Weber e eu, que tinha quase dois anos. Papai tinha um armazém chamado “Casa Caetano” e naquele dia, como teve muito movimento, acabou não tendo tempo para armar as nossas camas. Mamãe cansada da longa viagem, ficou fula da vida, e com toda a razão, mas com meu pai era difícil se brigar e logo tudo se acomodou.

Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, papai encontrava-se no Paraná. Corriam boatos que os gauchos que estavam vindo do Sul iriam matar todos os paulistas que encontrassem pelo caminho. Papai e mais alguns amigos paulistas refugiaram-se em um barco que ficava no Rio Tibagi. Há dias navegando no barco os fugitivos encontrando-se famintos, quando de repente toparam com um pé de Lima da Pérsia carregado de frutos bem junto à margem do rio. Foi uma festa, derrubaram todas as limas no barco e passaram vários dias, matando a fome e a sede, às custas das benditas frutinhas.

Papai teve o armazém, conhecido como Casa Caetano, depois o Bar do Centro, mas realizou-se mesmo foi como corretor de seguros. Ganhou vários prêmios da Sulamérica Seguros, dentre eles uma viagem à Fóz do Iguaçú e duas viagens à Argentina. Na primeira viagem à Argentina eu fui com ele, porque a mamãe não pode ir. A Leda tinha tido a Tutu, fazia poucas semanas e não tinha passado muito bem. Isso foi em 1950 e foi nessa viagem que conhecemos o primo Alfonso Otranto, filho do Paschoal, que morava em Buenos Aires.

Papai não seguia nenhuma religião, acreditava em Deus e tinha um amor muito grande pelo próximo. Ele era maçom desde mocinho. Não guardava rancor de ninguém e perdoava a tudo e a todos. A capacidade que ele tinha de compreender as fraquezas humanas era quase “sobrehumana”.

____________________________________

A T E N Ç Ã O
Para sugestões, alterações, complementos e envio de fotos
clique aqui para enviar email ao coordenador deste projeto

____________________________________

| home | otranto chagas | chagas | otranto | pugliese | godoy & marcondes |
| ferraz marquesgonçalves ferreira | ferreira | silva | pin & minelli | londrina |
imigração italiana | rossano | achiropita | crotoneaçoreanosaustríacos | vida de lutas |

atualizado em: 08/outubro/2015